20 Out Vida Consagrada: sinal segundo o Espírito??
Vida Consagrada: sinal segundo o Espírito??
Nunca antes houve um momento histórico-eclesial como o que vivemos hoje, um momento de tantas mudanças, avanços tecnológicos, possibilidades, de desafios e de tanta criatividade. No entanto, quando confrontados com o declínio do número daqueles que procuram seguir Cristo na sua Igreja e dos que se consagram a Ele para se dedicarem de coração indiviso[1], somos, por vezes, acometidos pela pergunta: a vida consagrada ainda é sinal? Ainda faz sentido na vida eclesial e no mundo?
- Consagração pelo Batismo
Na verdade, todos os que fazem parte da Igreja Católica vivem uma mesma consagração universal pelo batismo, isto é, todos somos consagrados! A vocação ao seguimento de Jesus Cristo segundo o espírito do Evangelho e à perfeição na santidade (cf. Lumen Gentium 31-32) está enraizada no batismo, ao qual todos são chamados. Resta-nos perguntar: Qual a diferença e o sentido do estado religioso que tantos ainda assumem, professando os conselhos evangélicos da castidade, pobreza e obediência?
- Dom gratuito de Deus
Em entrevista à revista Stella, publicada em outubro de 1942, Manuel Pedro Marto, pai dos Santos Francisco e Jacinta Marto, contava um episódio que acontecera momentos depois da aparição da Virgem Maria no mês de agosto de 1917, no lugar dos Valinhos e que pode ilustrar:
Nisto, vejo a Jacinta, na estrada, aos pulos, muito satisfeita, com um ramo de carrasqueira na mão e, ao mesmo tempo que ela entra em casa, chega-me assim um perfume tão fino como eu nunca cheirei na minha vida: “Ó Jacinta, que é o que trazes aí?” lhe perguntei. É um ramo de carrasqueira dos Valinhos, onde Nossa Senhora apareceu, ainda há bocado!” “Ora deixa cá ver!” Peguei no ramo, cheirei-o, mas nada: o perfume tinha desaparecido” Pus-me então a lembrar-me daquelas palavras: – “Sempre a sua Jacinta tem uma virtude qualquer”…[2]
A experiência do sublime e misterioso perfume, que se fez sentir naquele 19 de agosto de 1917, levou o pai da pequenita Jacinta a considerar a virtude desta. Mas, por outro lado, aquele raminho exalava a fragância da presença de Deus através da Senhora mais brilhante do que o Sol, a virtude e santidade daquela que é chamada pelo Anjo: cheia de Graça! (Lc 1,28)
Assim também o chamamento que Deus dirige a alguns tem a sua beleza e fundamento no amor gratuito de Deus que escolhe os que quer, não em virtude de aptidões naturais, de competências adquiridas, da conquista pessoal da perfeição moral ou dependente até de um gosto individual. A Vida Consagrada é dom. Dom de Deus que não sabe senão amar incondicionalmente, sem olhar ao mérito pessoal, mas em gratuidade e fidelidade. Os consagrados tornam visível na Igreja e no mundo a Misericórdia de Deus e a universalidade da salvação, porque ama a todos, mesmo sendo ainda pecadores (cf. Rm 5,8).
- A Vida Consagrada na Igreja
Como dom gratuito e incondicional de Deus, a vocação à vida religiosa deve ser acolhida pelo próprio na confiança, humildade e alegria de um sim. Por isso, à semelhança do misterioso perfume que bailava nas mãos da Santa Jacinta, essa vocação é um tesouro que não se pode agarrar, que não se possui, mas que deve ser colocado a render (Mt 24,14-30) na permanente e generosa entrega de si mesmo.
Em íntima relação com todos os estados de vida, a vida consagrada há-de ser igualmente acolhida e amada pela Igreja, pois ela é dom feito à Igreja: nasce na Igreja, cresce na Igreja, está totalmente orientada para a Igreja[3]. Plantados na mesma terra boa que é Cristo e participantes na mesma Vida, os religiosos, qual encarnação do Evangelho no espírito das bem-aventuranças, serão sempre a força que atrai todos os membros da Igreja à santidade.
- Alegria
Os religiosos são, sobretudo, pessoas de encontro com Jesus, pessoas que no encontro com Ele não esperam receber nada mais do que a sua vida. À semelhança da Santa Jacinta Marto que se deixou deslumbrar pela Luz Pascal irradiada pela Virgem Maria, e que, por isso, aos pulos não conseguia conter a alegria, os consagrados são aqueles que vivem animados por Deus, repletos da Sua presença e que contagiam a todos com a sua alegria[4] que grita ao mundo: Jesus está Vivo e quer-te vivo![5]
Por fim, não há nada que um consagrado faça que um leigo não possa fazer (cf. Lumen Gentium 30-31), porque o sentido do estado religioso, nas suas diversas formas, não é dar coisas, o seu trabalho e oração, mas é, sim, o dar-se por inteiro. A vida consagrada não consiste apenas em seguir a Cristo de todo o coração, mas trata-se de uma configuração e adesão total e plena a Ele, no abandono de tudo e de si mesmo (cf. Mt 19,27). Não é apenas viver o Evangelho, mas é ser Evangelho para os dias de hoje.
Enche-nos de esperança ver quantos jovens ainda se deixam interpelar pela voz de Deus que chama e Lhe confiam o seu “sim”, juntando-se à família daqueles que através do seu “ser” e “estar” no mundo, pela profissão da pobreza, castidade e obediência, renunciam ao apego das coisas, ao apego dos outros e ao apego de si mesmos, em ordem a uma adesão absoluta ao amor absoluto de Deus[6].
Ir. Isabel Santos, Aliança de Santa Maria
[1] Papa João Paulo II, Exortação Apostólica Vita Consecrata, 1 in https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_25031996_vita-consecrata.html, acedido a 22/05/2023.
[2] Maria de Freitas apud Luciano Cristino, «As Aparições de Fátima. Reconstituição a partir dos documentos» (Fátima: Santuário de Fátima, 2017) 69.
[3] Papa Francisco, Discurso aos Participantes do Jubileu da Vida Consagrada in https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco_lettera-ap_20141121_lettera-consacrati.html#_ftn8, acedido a 22/05/2023.
[4] Cf. José Cordeiro, Homilia da Eucaristia por ocasião da 27ª Peregrinação Nacional dos acólitos in https://www.diocese-braga.pt/documento/2005/37704, acedido a 30/05/2023.
[5] Cf. Papa Francisco, Exortação Apostólica Cristo Vive, 1 in https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20190325_christus-vivit.html acedido a 1/06/2023.
[6] Cf. Alexandre Freire Duarte, «Magis Magisque: reflexões sobre a espiritualidade dos religiosos», em A essência da vida consagrada, ed. Darlei Zanon (Lisboa: Paulus Editora, 2015), 67.