PERSEVERANÇA OU PERSEVERAÇÃO?

PERSEVERANÇA OU PERSEVERAÇÃO?

Amor que persiste, mas não se fixa.

De Chiara D’Urbano. Revista Vocazioni, 1 (2024)

 É curioso como o conhecido aforismo Errare humanum est, perseverare autem diabolicum utiliza o termo perseverar na sua aceção negativa.

Na verdade, a insistência em realizar uma atividade por mais tempo do que aquilo que é funcional ou eficaz, ou continuar com o mesmo comportamento “apesar de repetidas falhas ou motivos claros para interrompê-lo” (DSM-5-TR), segundo a ciência, não é perseverança, mas perseveração, que representa um traço de personalidade disfuncional. Por outras palavras, a tendência para prolongar alguma coisa que se revelou um fracasso não é um bom indicador de uma harmonia psicoafectiva.

Um par de namorados, que namoram há já alguns anos, têm discussões e chatices, como acontece com todos os namorados após a primeiro tempo em que as borboletas na barriga ofuscavam, ainda, as pequenas desavenças. Depois dos primeiros meses, porém, a Lúcia começa a perceber que as discussões são muito frequentes e que, embora sejam sobre pequenas coisas, começam a ficar mais intensas. Ela espera que o mau humor possa ser diluído: Paulo é um bom rapaz, porque não havia de funcionar? Se ela se esforçar mais e se disponibilizar mais para o diálogo – pensa ela – as discussões podem diminuir e, depois, todos vêm o casal como “um verdadeiro modelo” … O tempo continua a passar e a Lúcia começa a duvidar fortemente de que as coisas vão dar certo. Porém, ela decide seguir em frente com o noivado, convencida de que o tempo e o seu compromisso amoroso consertarão as coisas.

 Podemos imaginar várias sequelas para esta história.

O Roberto está no seminário, é brilhante nos estudos e faz amizade facilmente com os seus companheiros. Dizem que tem um bom carácter, é alegre e comunicativo. Os formadores não têm queixas particulares contra ele. Com o passar dos anos, porém, Roberto apercebe-se de que é, frequentemente, assaltado por tristezas e angústias para as quais não consegue dar uma explicação. Claro que não desiste do caminho só por causa disso, sabe bem que o mal-estar pode ser um momento de desolação espiritual e, por isso, esforça-se por continuar, rezar e confrontar-se, mesmo que se sinta “estranho“. O estado de espírito não o ajuda muito: exteriormente, não tem problemas, mas o que vive no seu interior é outra história. Está prestes a iniciar o sexto ano e, nesta altura, não é caso para ser subtil com dúvidas e questões, pelo que acha melhor ignorar os pensamentos que o atormentam, afinal “todos os sinais estão a seu favor“. Aquela leve suspeita de que algo não está bem é posta de lado.

Também aqui podemos especular sobre vários finais.

Perseverança ou perseveração por parte da Lúcia e do Roberto? Obviamente, não se pode responder apenas com base nestes breves excertos, seria necessário conhecer o desenrolar das respetivas histórias, mas eles dão-me a oportunidade de propor duas breves considerações: 1) que precisam as decisões importantes para poderem durar; 2) que algumas escolhas existenciais podem não funcionar.

  1. «Era uma vez... no meu tempo» é muitas vezes usado como critério para dizer que os casais do passado duravam mais tempo e que as vocações ao sacerdócio e à vida consagrada eram muito mais estáveis do que hoje, o que é apenas parcialmente verdade, uma vez que a história nos ensinou que sempre existiram fraquezas e falhas nos processos humanos e nas escolhas existenciais. Seria mais útil, a partir da mudança dos tempos atuais, reconhecer o que pode sustentar decisões de vida significativas. De facto, para perseverar são necessários vários elementos, tanto pessoais como relacionais.

A nível pessoal

 – O conhecimento e acompanhamento

Cada escolha, para ser duradoura, requer uma “preparação” adequada, o que significa um discernimento profundo, sem pressa e autêntico. A autenticidade deste processo é favorecida tanto pela possibilidade de encontrar um acompanhamento livre que permita à pessoa conhecer-se e abrir-se sem receios, como pela discrição do acompanhante, que não deve tomar o lugar do outro, dando diretivas sobre o suposto “caminho certo” que a Lúcia e o Roberto devem seguir.

 – A motivação

O “porquê” de se escolher uma pessoa como parceiro ou um caminho para a vida consagrada é uma questão tão simples quanto fundamental. Os estudos dos sistemas motivacionais dão uma perspetiva importante que nos permite afinar o olhar sobre o que pode animar o nosso modo de escolher e o nosso comportamento. O que é que estou à procura? Que “registo” utilizo: procura de cuidados e atenção, necessidade de estabelecer uma identidade e uma posição social? Ou, desejo de cooperar, partilhar, tornar-me generativo?

 A nível relacional

Uma mensagem que o nosso tempo, com a sua complexidade e rapidez, nos deixa é que sozinhos não somos capazes de tornar duradouro qualquer projeto de vida. Tanto para os casais como para as vocações de especial consagração, existe a necessidade de uma reflexão comunitária séria. O “sim” dado no dia do matrimónio ou da ordenação deve, portanto, ser apoiado num tecido social que reconheça a importância de uma escolha e que, assim, encoraje e apoie os cônjuges a permanecerem ligados, o padre a não se sentir sozinho, a mulher consagrada a ser valorizada na sua missão.

A perseverança exige um trabalho pessoal sobre si mesmo, mas este seria insuficiente sem a colaboração do ambiente em que a vocação se desenvolve. As amizades, por exemplo, do sacerdote ou do consagrado e da consagrada com outros irmãos e irmãs no mesmo caminho, ou o intercâmbio entre casais para partilhar momentos de lazer e momentos mais profundos de reflexão, são vitais. Tal como é vital a reciprocidade das vocações, que as famílias se envolvam na formação e na vida dos sacerdotes e dos consagrados, e vice-versa. Precisamos uns dos outros. Os processos individuais sem processos comunitários correm maior risco de se perderem.

  1. Uma palavra sobre a perseveração, embora, em poucas linhas, o risco de mal-entendidos seja grande. A escolha mais convicta e sólida, na vida, encontra dificuldades sérias e por vezes tremendas. De modo surpreendente, a Amoris Laetitia contempla a crise como parte da “beleza dramática” de cada família/vocação (cf. n. 232). Portanto, o facto de encontrar obstáculos, mesmo que grandes, não é indício de “ter escolhido mal” e não pode ser, por si só, motivo para atirar pela janela a decisão amadurecida, invocando as muitas dificuldades como razão para a repensar. No entanto, a partir da minha experiência de acompanhamento psicológico, no domínio profissional e no trabalho de peritagem nas nulidades matrimoniais, reconheço que algumas escolhas não foram de todo amadurecidas e que, com o passar dos anos, essas decisões, tomadas sobre bases frágeis, podes transformar-se num enorme sofrimento para si próprio e para os outros. Cada situação é única, é evidente, mas nalgumas circunstâncias pode ser necessária uma reflexão mais aprofundada (que por vezes pode ser a primeira verdadeira reflexão sobre si próprio e sobre as suas motivações) sobre aquilo que se quer. Partindo, portanto, de uma maior consciência da sua maneira de ser e do objetivo a atingir, uma condição existencial pode sofrer processos de modificação e de mudança de rumo.

Uma última palavra: Precisamos de vocações autênticas, tal como diz o título de um recente Convénio da UNPV, porque dá coragem ver pessoas mais velhas permanecerem juntas durante toda a vida, padres e religiosos que, após 50 anos, dizem sentir-se realizados. Aqueles que, pelo contrário, vivem a sua história como um fracasso ou como um fardo, possam encontrar pessoas que não apagam a esperança de um novo começo.

[Tradução: SDPV]

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