A VOCAÇÂO, segundo Thomas Merton

A VOCAÇÂO, segundo Thomas Merton

 

  1. Todos nós temos algum tipo de vocação. Todos somos chamados por Deus para participar da Sua vida e do Seu Reino. Cada um de nós é chamado a um lugar especial no Reino. Se encontrarmos esse lugar, seremos felizes. Se não o encontrarmos, nunca poderemos ser completamente felizes. Para cada um de nós, só é necessária uma coisa: cumprir o nosso destino, segundo a vontade de Deus, de ser o que Deus quer que sejamos.

Não devemos imaginar que só descobrimos esse destino jogando às escondidas com a Divina providência. A nossa vocação não é um enigma da Esfinge, que temos de resolver numa única tentativa ou perecemos. Algumas pessoas descobrem, no fim, que fizeram muitas tentativas erradas e que a sua vocação paradoxal é passar a vida a fazer tentativas erradas. Levam muito tempo a descobrir que são mais felizes assim.

Em todo o caso, o nosso destino é obra de duas vontades, não de uma. Não é um destino imutável que nos é imposto sem escolha própria por uma divindade sem coração.

A nossa vocação não é uma lotaria sobrenatural, mas a interação de duas liberdades, logo, de dois amores. É inútil tentar resolver o problema da vocação fora do contexto da amizade e do amor. Falamos da providência, que é um termo filosófico. A Bíblia fala do nosso Pai celeste. A providência é, consequentemente, mais do que uma instituição, é uma pessoa. Mais do que um estranho benevolente, Ele é nosso Pai. E mesmo o termo Pai é uma metáfora muito vaga para conter toda a profundeza do mistério, pois Ele ama-nos mais do que nós nos amamos, como se fôssemos Ele. Ama-nos, além disso, com as nossas próprias vontades, com as nossas próprias decisões. Como podemos compreender o mistério da nossa união com Deus, que está mais próximo de nós do que estamos de nós mesmos? É precisamente a Sua proximidade que faz com que tenhamos dificuldade em pensar n’Ele. Ele que está infinitamente acima de nós, é infinitamente diferente de nós, infinitamente “outro” além de nós, habita, todavia, nas nossas almas, observa cada movimento da nossa vida com tanto amor como se fôssemos Ele próprio. O Seu amor trabalha para extrair o bem de todos os nossos erros e derrotar até os nossos pecados.

Ao planear o curso das nossas vidas, devemos lembrar-nos da importância e da dignidade da nossa própria liberdade. Um homem que teme resolver o seu futuro através de um bom ato de sua própria livre escolha não compreende o amor de Deus, pois a nossa liberdade é um dom que Deus nos deu para que possa amar-nos mais perfeitamente e ser amado mais perfeitamente por nós em troca.

 

  1. O amor é perfeito na proporção da sua liberdade. É livre na proporção da sua pureza. Agimos mais livremente quando agimos puramente em resposta ao amor de Deus, Mas o mais puro amor de Deus não é servil, nem cego, nem limitado pelo medo. A caridade pura tem plena consciência do poder da sua própria liberdade. Perfeitamente confiante de que é amada por Deus, a alma que O ama ousa fazer uma escolha própria, sabendo que a sua própria escolha será aceitável para o amor.

Ao mesmo tempo, o amor puro é prudente. É iluminado com um discernimento perspicaz. Treinado na liberdade, sabe como evitar o egoísmo que frustra a sua ação. Vê obstáculos e evita-os ou ultrapassa-os. É intensamente sensível aos mais pequenos sinais da vontade de Deus e do seu beneplácito nas circunstâncias da sua própria vida, e a sua liberdade é condicionada pelo conhecimento de tudo isso. Logo, ao escolher o que vai agradar a Deus, tem em conta todos os mais pequenos indícios da Sua vontade. No entanto, se somarmos todas essas indicações, elas raramente são suficientes para nos dar certeza absoluta de que Deus deseja uma coisa excluindo rodas as outras. Aquele que nos ama pretende com isso deixar-nos espaço para a nossa própria liberdade, para que ousemos escolher por nós mesmos, com a única certeza de que o Seu amor ficará agradado com a nossa intenção de Lhe agradar.

 

  1. Cada homem tem a vocação de ser alguém, mas tem de compreender claramente que, para cumprir essa vocação, só pode ser uma pessoa; ele próprio. Porém, dissemos que o batismo nos dá um carácter sacramental; definindo a nossa vocação de uma maneira muito particular, pois diz-nos que devemos tornar-nos nós mesmos em Cristo. Devemos conquistar a nossa identidade n’Ele, com quem já estamos sacramentalmente identificados pela água e pelo Espírito Santo.

O que significa isto? Temos de ser nós mesmos sendo Cristo. Para o homem, ser é viver. Um homem só vive como homem quando conhece a verdade e ama o que conhece e age de acordo com o que ama. Dessa forma, torna-se a verdade que ama. Então nós “tornamo-nos” Cristo pelo conhecimento e pelo amor.

Ora, não há cumprimento da verdadeira vocação do homem na ordem da natureza. O homem foi feito para mais verdade do que aquela que consegue ver com a sua própria inteligência sem ajuda, para mais amor do que a sua vontade por si só consegue alcançar e para uma atividade moral mais elevada do que a prudência humana alguma vez planeou.

A prudência da carne opõe-se à vontade de Deus. As obras da carne levar-nos-ão às profundezas do inferno. Se conhecermos, amarmos e agirmos apenas de acordo com a carne, ou seja, de acordo com os impulsos da nossa natureza, as coisas que fizermos rapidamente corromperão e destruirão todo o nosso ser espiritual.

Para sermos aquilo que é suposto sermos, devemos conhecer Cristo, amá-Lo e fazer o que Ele fez, O nosso destino está nas nossas mãos, pois Deus pô-lo lá e deu-nos a Sua graça para faze o impossível. Resta-nos assumir com coragem e sem hesitação a obra que Ele nos confiou, que é a tarefa de viver a nossa vida como Cristo viveria em nós.

É preciso uma coragem intrépida para viver segundo a verdade, e há algo de martírio em toda a vida verdadeiramente cristã, se o entendermos no seu sentido original de “testemunho” da verdade, selado no nosso sofrimento e no nosso sangue.

 

  1. Ser e fazer tornam-se um só, na nossa vida, quando a nossa vida e o nosso ser são, eles próprios, um “martírio” pela verdade. Desta forma, identificamo-nos com Cristo, que disse: “Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37). A nossa vocação é precisamente esta: testemunhar a verdade de Cristo, entregando as nossas vidas às Suas ordens. Por conseguinte, Ele acrescentou às palavras que acabámos de citar “Todo aquele que vive da verdade escuta a Minha voz”. E noutra

passagem, disse: “Conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me” (Jo 10,14).

Esse testemunho não tem de assumir a forma especial de uma morte política e pública em defesa da verdade ou virtude cristã, mas podemos evirar a “morte” da nossa vontade, das nossas tendências naturais, das paixões desmedidas da nossa carne e de

todo o nosso “ser” egoísta para nos submetermos ao que a nossa própria consciência nos diz ser a verdade e a vontade de Deus e a inspiração do Espírito de Cristo.

 

De Thomas Merton, no livro Nenhum Homem é Uma Ilha,137-140.

 

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