20 Out A vocação religiosa: o quê e para quê?
A vocação religiosa: o quê e para quê?
O Padre Ricardo Aguiar, diretor do Secretariado Diocesano da Pastoral das Vocações, da diocese do Porto, pediu-me um pequeno texto em que falasse sobre a vocação religiosa. Mesmo sem ter particular jeito para estas coisas, disse-lhe que sim. Como consequência, nasceu este texto.
Antes de falar da vocação religiosa creio ser importante, ainda que de forma breve, dizer alguma coisa sobre a vocação. E isto porque, quando falamos em vocação, pensamos habitualmente numa coisa algo estranha, própria de padres e freiras, mas que não tem nada que ver com a vida das pessoas “normais”. Esta é a primeira ideia que eu gostava que se desvanecesse. A vocação não é coisa de uns “raros”. A vocação é coisa de filhos! E, pelo batismo, filhos de Deus somos todos nós!
A palavra vocação deriva do verbo latino vocare, verbo esse que significa chamar. Assim, a vocação é algo que nasce de uma interpelação, é uma resposta a uma voz que falou primeiro. Alguém poderia objetar que essa “voz” não fala a todos. A essa afirmação eu responderia negativamente. Esta “voz”, claro está, não é uma voz que escutamos com os ouvidos corporais, nem ordinariamente surge rodeada de querubins e serafins. Esta “voz” é mais uma força, uma certeza interior que nos impele, que nos anima e que, mesmo no meio das mais diferentes situações e problemas, nos enche de paz e da certeza de estarmos a fazer a vontade de Alguém que é mais que nós.
Assim, a vocação não é coisa de poucos (mal vai a coisa quando a vocação é coisa de poucos). A vocação deve ser coisa de todos os batizados, de todos aqueles a quem Deus chama de filhos, a quem Jesus chama de irmãos e a quem o Espírito Santo anima, guia e fortalece. Sim, porque quando Deus nos sonhou, sonhou um plano de felicidade e de amor para todos nós. Não é menos verdade que podemos recusar esse plano. Mas se Deus nos sonhou com esse plano de amor e graça, só seremos plenamente felizes, só nos realizaremos totalmente se procurarmos escutar essa “voz” que fala dentro e que nos quer revelar tudo quanto Deus sonhou para nós.
De entre as várias vocações, há uma particular: a vocação religiosa. Sendo consequente com o que disse, fica claro que qualquer vocação é um dom, é algo que nos é dado e que aquilo que nos é pedido é que a acolhamos e vivamos de acordo com o dom recebido. Isto é verdade para qualquer vocação, pelo que também é verdade para a vocação religiosa. Mas qual a especificidade da vocação religiosa, o que é que é próprio dos religiosos? E antes disso, o que são os religiosos?
De uma forma simples, os religiosos são aqueles que professam (pelo menos) os votos de pobreza, castidade e obediência. Fazem-no porque foi este o estilo de vida que Cristo viveu. Efetivamente, os religiosos têm a pretensão, o desejo de imitar a Cristo mais de perto. Não se trata de um mimetismo anacrónico, daquele que nos levaria a só calçar as sandálias que Jesus pudesse ter calçado ou a comer simplesmente o que Jesus pudesse ter comido. Não se trata desse imitar. Trata-se, sim, de recordar o essencial da vida de Jesus e coloca-lo em prática nas nossas próprias vidas. É por este motivo que todos os religiosos emitem os três votos, porque Jesus viveu pobre, casto e obediente toda a sua vida.
Mas será que faz sentido viver assim? Será a riqueza é assim algo tão mau? Não são as relações entre os esposos boas? Então porquê a castidade? E a obediência: não vivemos numa época em que gostamos de ser independentes e de viver a nossa independência? Porquê obedecer? Será que quem vive assim está bom da cabeça? Isto faz algum sentido? Espero não espantar ninguém ao dizer, desde já, que sim, que faz sentido viver assim. Vejamos porquê.
Primeiro de tudo, é bom não esquecer que a pobreza e a miséria são coisas diferentes. A miséria é algo mau e, como tal, deve ser erradicada. A pobreza não, pelo menos não a pobreza que os religiosos professam. Para os religiosos, a pobreza não vem do facto de os bens serem maus ou pecaminosos. A pobreza que vivemos, mais do que material, é espiritual. A pobreza relaciona-se mais com uma atitude interior do que o peso (ou a leveza) da carteira. Professamos pobreza, ou seja, tentamos viver de forma austera, simples, colocando tudo em comum porque sabemos que os bens deste mundo – que são bons e legítimos – são passageiros. O nosso voto remete-nos para outra realidade, para o nosso futuro, para o Céu. Com a nossa vida pobre pretendemos ser um sinal de que as verdadeiras realidades, aquelas pelas quais vale mesmo a pena lutar e trabalhar afincadamente não são o carro x ou a casa y. A nossa verdadeira riqueza é Deus, é por Ele que aspiramos e pelo Céu que Ele promete que trabalhamos. Assim, o voto da pobreza pretende fazer compreender ao nosso mundo o lugar onde deve estar o nosso coração.
E a castidade? Como compreende-la? Mais uma vez, é necessário esclarecer conceitos. Quando falamos em castidade falamos de uma forma concreta de amar: a forma de Jesus. Sabemos que Jesus não foi casado, facto este bastante incomum no Seu tempo. Mas ninguém crê que só pelo facto de Jesus não se ter casado, não tenha amado. Pelo contrário, o Evangelho relata-nos o jeito de Jesus amar: todos e por igual. E assim estão chamados a amar os religiosos. Enquanto os casais estão chamados a uma relação de exclusividade – própria do matrimónio – os religiosos, como Jesus, estão chamados a amar de forma universal, não recusando o seu amor a ninguém: rico e pobre, culto ou ignorante, crente ou não, em cada Homem estamos chamados a reconhecer um irmão para amar, tal como fez Jesus.
E a obediência? Se atendermos à origem da palavra, verificamos que ela provém do latim e que tem na sua raiz a palavra escuta. A obediência não é um assentimento acrítico a tudo quanto nos dizem. A obediência, porque está relacionada com a escuta, é uma resposta a uma interpelação. Somos obedientes porque pela vivência do voto vamos descobrindo a voz de Deus que se manifesta na nossa vida. Tal como Jesus, que foi obediente até à morte, que escutou sempre a voz do Pai e colocou em prática o que Lhe pedia. Assim também nós, vivemos o voto da obediência para podermos discernir melhor a vontade de Deus para a nossa vida.
Concluo o meu texto dizendo que os religiosos não são bichos raros! São homens e mulheres que desejam seguir a Cristo mais de perto, imitando assim o seu estilo de vida: pobre, casto e obediente. O Senhor chama-os para que possam ser um sinal no nosso mundo, um sinal concreto de que é possível viver colocando Deus em primeiro lugar, é possível tentar colocar em prática na vida o Evangelho de Jesus. Mas, acima de tudo, estamos perante um dom, um chamamento gratuito que o Senhor faz a quem quer, quando quer e como quer. Só nos resta responder.
Fr. André Morais, Carmelita
Imagem:Mosteiro de Singeverga
Fonte: https://www.cm-stirso.pt/